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O relojoeiro da rua dos Altos Degraus

Henri Gougaud
La Bible du Hibou
Paris, Ed. du Seuil, 1993

O relojoeiro da rua dos Altos Degraus

No ano de 1465, um artesão vindo do Oriente, chamado Osvaldo Biber, abriu uma loja na Rua dos Altos Degraus, entre o Sena e Maubert, onde então havia apenas tugúrios miseráveis, ruelas de má fama, mendigos e gente pobre. Havia entre eles tribos de ciganos que acampavam à beira-rio. Faziam negócio com magias duvidosas, em tendas multicolores, num lugar chamado a Ponte das Achas, onde o Bièvre desaguava no Sena. Estes boémios liam o futuro nas mãos dos homens, nos olhos das crianças, na areia remexida com um pau. Não eram bem-vistos pelas pessoas. Eram gente do inferno.

Só Osvaldo Biber mantinha com eles relações de boa vizinhança. Eis, sem dúvida, pela qual os devotos do bairro se benziam à sua passagem e o acusavam, em surdina, de possuir segredos maléficos. Tanto mais que ele tinha um ofício pouco comum naquele século e vagamente inquietante. Era relojoeiro. Fabricava máquinas que contavam as horas. Brincava (fazia talvez batota) com o tempo.

Os poucos nobres que frequentavam assiduamente a sua loja viam todas as manhãs desaparecerem-lhes as rugas, reavivar-se a sua tez, os corpos ganharem forças. Os velhos voltavam à idade madura, os quinquagenários à juventude e os calvos aos bons tempos das cabeleiras fartas. Para eles apenas, os anos passavam ao contrário. Por que diabo de milagre? Murmurava-se que Osvaldo Biber tinha fabricado relógios que faziam os dias voltarem para trás. Bastava inscrever-se no coração da máquina o nome daquele que queria voltar para trás. A cada tiquetaque, o homem rejuvenescia. Na verdade, Biber vagueava pelos confins indecisos da arte e da ciência, fora dos caminhos comuns do mundo. Acabou por neles se evaporar.

Um dia, os clientes habituais vieram em grupo bater à porta envidraçada. A angústia corroía-os. Estavam todos elegantes, vigorosos, jovens, belos. Queriam permanecer assim. Suplicaram a Biber que fizesse com que os ponteiros dos seus relógios retomassem o percurso normal do tempo.

— Impossível — respondeu-lhes o sábio relojoeiro. Não tenho esse poder.

Os outros protestaram. Empurraram Biber para o fundo da loja, à força de súplicas.

— Rejuvenescer mais ainda é insuportável — disseram. — Tanto mais que, a este ritmo, já conhecemos de antemão o dia da nossa morte. Será o do nosso nascimento.

Mestre Osvaldo insistiu.

— Não posso fazer nada por vós. Não sejais ingratos. Sem mim, a esta hora, seríeis velhos, decrépitos ou defuntos.

Os batoteiros do tempo não o escutaram.

— Bom homem — disseram, subitamente ameaçadores. — Conhecemo-vos há quase vinte anos. Dizei-nos porque é que o tempo não parece ter domínio sobre vós.

Biber respondeu-lhes:

— Meus senhores, fui ensinado por um sábio veneziano que não me revelou todos os seus segredos mas que me ofereceu, no fim dos ensinamentos, um relógio cujos ponteiros balançam um dia para a direita, outro dia para a esquerda. Envelheço num dia, rejuvenesço no outro. Sou eterno.

Ditas estas palavras, pôs fora os importunos.

Algumas semanas mais tarde, na oficina da Rua dos Altos Degraus, foram vistos cerca de dez cadáveres amontoados entre relógios estilhaçados e maquinetas espalhadas em grande confusão. Eram os clientes de Biber vindos em grupo buscar o relógio único, o Eterno. Não o tinham encontrado. Um pavor insustentável ter-se-ia então apoderado deles, tornando-os cegos. Viraram-se uns contra os outros. Os mecanismos que governavam o seu destino não resistiram à violência. No instante em que os seus relógios pararam, caíram fulminados como marionetas sem dono.

Atiraram-nos para um ossário onde, segundo reza a crónica, «a terra era tão putrefacta que os seus corpos se consumiram em nove dias». Quanto a Osvaldo Biber, não voltou a aparecer. A sua casa permaneceu fechada durante algum tempo. Depois, um outro relojoeiro, vindo não se sabe de onde, estabeleceu-se dentro dessas paredes. Alguns velhos habitantes do bairro asseguram que, no nosso século, pelo fim da última guerra, o suposto herdeiro de uma descendência de artesãos reparava ainda relógios naquele lugar. Chamava-se Cyril. Era um homem sem idade, discreto, tranquilo, inalterável. Num fim de tarde, como habitualmente, fechou a loja. Não voltou nunca mais. Só Deus sabe onde ele está, nestes tempos que voam.